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Divulgação / Amazon |
Como um dos piores livros que já li contém o melhor personagem literário que já conheci? Li o livro em espanhol aqui, por causa de um curso, mas vocês podem lê-lo em português por aí.
Minhas opiniões, tanto sobre o livro quanto sobre o personagem, não são acadêmicas. São subjetivas mesmo, embora críticas e reflexivas. E, como vou analisar um personagem específico, não dá pra fugir de spoilers.
Sinopse do livro
De acordo com a Amazon:
“UM LIVRO QUE EVOCA EMOÇÕES, SABORES E AROMAS POR MEIO DE PALAVRAS
É na cozinha que Tita, a protagonista, passa a maior parte do tempo. Sua vida está relacionada aos pratos que afetuosamente prepara. Este romance narra a história de Tita desde o seu nascimento em um rancho no norte do México, com destaque para sua juventude, o amor por Pedro, e a missão de cuidar da dominadora Mãe Elena.
O tempero combina a revolução mexicana no início do século XX com o realismo fantástico marcante na literatura latino-americana. Uma obra para ser apreciada em todos os sentidos.”
Amor sentimento x amor decisão
O livro está constantemente opondo a sobriedade, a dedicação, a serenidade, a sensibilidade e o carinho à libido, afirmando que esta última é “o verdadeiro amor”, em vez do somatório dos demais.
O conceito de amor é extremamente polissêmico. Pela lógica das afirmações e por minha escolha pela Igreja Católica como religião (inclusive esta em decorrência daquela), concordo com as palavras do saudoso Papa Bento XVI na encíclica Deuscaritas est, dentre as quais vale destacar:
“Dois dados resultam claramente [...] sobre a concepção do eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência.
E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu « envenenamento », mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.
Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação.
Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza.
O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes com a saudação: « Ó Alma! ». E Descartes replicava dizendo: « Ó Carne! ». [3] Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma.
Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor — o eros — pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.”
Assim, amor é a união entre alma e corpo, é prazer e vontade, é instinto e moderação, é deleite e renúncia, é acolhida e entrega, é respeito e fidelidade.
Tita e Pedro são dois idiotas, um mais que a outra
De fato, muita gente, ao ler o livro, gosta do casalzinho fútil por seus atos “revolucionários” e por sua luta pela “liberdade” (aqui se entenda libertinagem). Por melhores que “sejam” as ideias “revolucionárias”, a luxúria do casal não convence. Eles não tem o menor vínculo real e nem a relação nem Pedro tem desenvolvimento.
Tita, por sua vez, tem a liberdade de refletir, tem consciência de várias possibilidades e do caminho melhor a seguir, mas opta pelo impulso, demonstrando uma falta de compromisso e de amor consigo mesma. Pedro não a merece e ela, por sua vez, não merece o amor de John.
No que diz respeito ao verdadeiro amor, o casal limita-se à libido: não há alma – intimidade real sobre os sentimentos e as convicções de cada um -, nem vontade – Pedro acaba casando-se com Rosaura e Tita quase se casa com John -, nem moderação – é tudo carne.
Não há também renúncia – os sacrifícios que fazem não são um pelo outro, mas por outras pessoas envolvidas, como Rosaura e John -, respeito – ambos tratam-se como objetos, corpos desvinculados das almas que de fato os tornam individuais – ou fidelidade.
A relação entre John e Tita
John Brown era o médico da família mesmo antes de que os fatos narrados no livro tivessem início. Porém, era apenas isso e nada mais. Até porque ele já fora casado – embora isso não seja um impedimento nas histórias das personagens dessa trama – e a morte de sua esposa fechou-o para o amor.
E foi num dia de março, na transição do inverno para a primavera no Hemisfério Norte, que os dois se reencontraram e de uma forma diferente. John viu Tita de uma forma que não a vira anteriormente: uma bela mulher, mais que uma paciente. Mas ela continuava a vê-lo apenas como um profissional, devido a sua paixão por Pedro.
Mas os sofrimentos cada vez mais intensos de Tita levaram-na a agir como louca e o doutor Brown, responsável por tratá-la, começou a aproximar-se cada vez mais. Distintamente do que lhe encarregara a mãe de Tita – de jogá-la num manicômio -, o médico levou a moça para sua casa e dela cuidou carinhosa e dedicadamente.
E, até mesmo quando ela lhe causou as maiores dores sentimentais e não lhe foi digna, ele a respeitou. Ele amou o ser humano que havia nela, apesar de suas imperfeições.
O amor nos resgata
“Esas manos la habían rescatado del horror y nunca lo olvidaría.” (Laura Esquivel)
Talvez seja realmente isso o amor, um resgate. Resgate dos perigos, dos erros, das prisões, das compulsões, do desânimo, da falta de sentido... Um resgate do outro, um resgate de si mesmo(a).
John acolheu Tita em seus piores momentos – físicos e morais - e da melhor forma, e dela nada esperou. Eis o amor de Cristo, um amor que dizemos sentir, mas nunca lhe chega aos pés.
“A fonte da alegria cristã é esta consciência de ser amado por Deus, […] com amor apaixonado e fiel, um amor que é maior que a nossa infidelidade e os nossos pecados, um amor que perdoa”. (Papa Bento XVI)
“John, a paz, a serenidade, a razão”
Eis as descrições atribuídas a John e eis o que o amor deve-nos proporcionar. Ao longo do livro, o que se chama de “amor verdadeiro” é, na verdade, o prazer meramente carnal, a luxúria, o sexo decorrente de atração física sem a coragem necessária para a entrega completa.
A fala mais linda
Ao mostrar a Tita um experimento com fósforo, John lembrou-se de uma teoria de sua avó, hipótese que relatou à jovem enferma. E palavra alguma que eu disser servirá para explicá-la melhor que ela mesma, então vamos à citação integral:
“Minha avó tinha uma teoria muito interessante: dizia que ainda que nasçamos com uma caixa de fósforos em nosso interior, não podemos acendê-los sozinhos porque necessitamos, como no experimento, de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigênio tem de provir, por exemplo, do alento da pessoa amada.
A vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ousom que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos. Por um momento nos sentimos deslumbrados por uma intensa emoção.
Se produzirá em nosso interior um agradável calor que irá desaparecendo pouco a pouco conforme passe o tempo, até que venha uma nova explosão para reativá-lo. Cada pessoa tem de descobrir quais são seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se produz ao acender-se um deles é o que nutre de energia a alma.”
“Agora só lhe servia como um cão de guarda, como guarda-costas, sem se afastar dela um só segundo”
Essa é, na verdade, uma menção honrosa ao sargento Treviño, o eterno apaixonado por Gertrudis. Na verdade, ele não é apenas apaixonado: ele a ama. Vale a pena conhecê-lo nos poucos momentos em que aparece.
Por hoje é só!
Antes de ir, conta pra mim:
- Já amou e odiou um livro ao mesmo tempo? Por quê?
- Conhece um personagem melhor que el doctor Brown para me indicar?
Continua ligado(a) nos posts, que vêm muitos livros e muitas séries por aí. Talvez até alguns filmes!
Gostei muito da publicação! Escrita maravilhosa e que nos desperta a curiosidade de conhecer a obra na íntegra para ampliar o olhar e (re)visitar o conceito de amor, partindo do próprio para escolhas mais acertivas.
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