Introdução
![]() |
Pixabay |
Com vocês, a
crônica Instagramada e sua justificativa. Recomendo a leitura do conto, após a crônica, antes de ir à justificativa.
Obs.1: esse não foi um trabalho publicado anteriormente. Foi apenas objeto de avaliação de uma disciplina realizada em 2022 (para o qual, inclusive, recebi um 10), então não infrinjo a ética acadêmica aqui. Aliás, devido ao meio de circulação distinto, os textos contêm pequenas alterações.
Obs.2: não deixarei sinopses com vocês hoje. Ambas as leituras são curtinhas. Só o que digo é que o clássico vale muito pra nossa alma e espero que meu amadorismo sirva também!
Instagramada
Ela era o orgulho de seus pais. Era bonita e arrumada, estava-se formando em Direito por uma universidade pública e concorrida, era assistente administrativa concursada de um grande banco, ia à igreja, tinha um namorado promissor e uma vida social agitada.
As redes sociais, repletas de seguidores, refletiam o dia a dia pleno da jovem e recebiam muitas curtidas, às vezes com comentários, às vezes sem. Não que as pessoas não quisessem comentar.
(Afinal, num divã de psicanalista, ninguém tem algo a dizer já no primeiro momento; nas calçadas do vizinho e atrás de uma tela, porém, as bocas e os dedos são ávidos por pronunciamentos repentinos e imprudentes.)
O que acontecia era que a moça censurava automática ou manualmente alguns comentários de suas publicações, desativando essa função por inúmeras vezes. Ela já se vira às voltas com haters e tomava suas precauções para que a vida não fosse tóxica. E era aquele o caminho, e tudo dava certo.
Só que parece que a vida escolhe um tempo para impor suas reviravoltas. E tudo passa, até mesmo a alegria. E às vezes só se percebe quando já é tarde.
Primeiro foi o namoro ideal que ruiu; depois, quando ela tentava admissão na OAB pela primeira vez, não obteve a tão sonhada aprovação; por fim, quando ela buscava afogar as mágoas nos braços de seus admiradores virtuais, descobriu que um infeliz posicionamento político, durante período eleitoral de grande tensão, roubou-lhe um considerável número de discípulos.
Já não tinha ânimo para se arrumar, já não tinha forças para trabalhar, já não tinha vontade para estudar, já não tinha razões para rezar. Já nem sequer se interessava em socializar, fosse presencial ou virtualmente. Já não era o caminho, e nada dava certo.
Aconselhada pelos pais, dos quais ela ainda conservava um bom (mas não orgulhoso) olhar, ela buscou ajuda psicológica. Descobriu que se escondera sob um amontoado de máscaras que eram incompatíveis com a sua identidade e que, paulatinamente, esquecera-se de sua essência e dissipara-se na imagem divulgada.
Ela descobriu que não amava o namorado que a deixara e que fora melhor assim, visto que, para sustentar durante anos um relacionamento com o rostinho bonito de um engenheiro bem sucedido, renunciara desde a fúteis caprichos até a necessidades profundas, intoxicando-se pelo egocentrismo do parceiro.
Descobriu também que se acomodara a uma carreira pública de nível médio por causa de sua menor instabilidade e que seu maior desejo como profissional, na verdade, era justamente o que a movia nas redes sociais: a fotografia.
Descobriu, igualmente, que se deixara levar pelo suposto status da advocacia sem que aquilo lhe preenchesse minimamente o mais íntimo desejo de agregar sentido a sua vida.
Descobriu, enfim, que não precisava de aprovações alheias para ser feliz e que elas não seriam suficientes para que ela, Elisa, pudesse sentir-se bem consigo mesma.
Agora, ela recomeça a lutar. Já tem vontade para se arrumar, já tem uma boa profissão para se dedicar, já tem novos conteúdos para estudar, já tem esperanças para rezar. Até já tem desejo de socializar, mais presencial que virtualmente. Elisa não é só o orgulho de seus pais, mas também é a filha. É um novo caminho, e tudo vai dar certo.
Justificativa
“Instagramada” é um neologismo usado para falar de publicações em geral feitas por usuários da rede social Instagram. Atualizando a problemática da identidade humana, a crônica por este termo intitulada visa dialogar com o conto O Espelho, de Machado de Assis.
Ambos os protagonistas, Jacobina e Elisa, constroem e descobrem suas identidades a partir da alteridade (relação com o outro) e do status social.
Contudo, enquanto aquele se encontra, primeiramente, nos elogios de seu círculo íntimo e, posteriormente, no fardamento militar (explicado por Alfredo Bosi em O duplo espelho em um conto de Machado de Assis), esta se entende tanto por meio dos likes que recebe em sua rede social quanto pelo relacionamento amoroso e pela carreira que contribuíram para a aquisição das curtidas.
Além disso, ao passo que o autor carioca é sutil em sua mimesis (representação da realidade por meio da arte), a cearense que escreve agora é mais escrachada em sua sátira (narrativa crítica).
Isso acontece por alguma razão, seja por uma curta experiência literária, seja por influência do sarcasmo desvelado de Aluízio Azevedo em O Mulato (cuja leitura atenta tem realizado), seja porque o momento político em que vive no Brasil exige palavras claras e autênticas.
Assim, enquanto aquele recorre à História para nomear seu protagonista – evidência detalhada pelo artigo REFLEXOS DO MEDO NA MODERNIDADE: UMA LEITURA DE "O ESPELHO" [...] -, esta vale-se predominantemente de uma dêixis (referência que se interpreta com o contexto de leitura) - vaga e constantemente atualizável ao gosto do leitor - para atribuir um elo comum aos fatos de sua trama.
Outra distinção entre os escritos diz respeito ao desfecho das personagens: segundo Bosi, Jacobina resignou-se ao olhar social e o peso de sua alma exterior tornou-o [...] casmurro e cáustico; “ela”, em contrapartida, aprende que sua identidade constrói-se, sim, a partir do que a diferencia [...] e de seu papel social, mas não se reduz ao olhar subjetivo daqueles que a cercam.
É nesse momento, inclusive, que o narrador permite-se falar o nome dela, do qual tanto parecia fugir, já que, inconscientemente, a própria Elisa buscava fora de si e numa realidade simulada o que não encontrava – ou tinha medo de não encontrar – dentro e nos contatos reais.
A propósito, o batismo da personagem é uma brincadeira com a Língua Portuguesa:
apesar de, em sua gênese (origem) semântica (significativa), não ter este significado, a intenção foi unir o pronome “ela” ao sufixo “-isa”, que atribui funções femininas – poetisa e profetisa, por exemplo -, mostrando que a personagem passa boa parte da crônica cumprindo a função de um ser dêitico (sem identidade própria) e regido pela visão subjetiva do outro.
Conclusão
E aí, gente, gostaram da minha historinha? Acham que eu dou para escritora ficcional?
Na próxima semana, volto com meus posts filosóficos / brisas de análise.
Nenhum comentário:
Postar um comentário