Introdução
Na semana passada, comentei com vocês quão forte é a presença de questões acerca da identidade nacional na obra Terra Sonâmbula, de Mia Couto, e como essas reflexões podem ser transpostas da vida moçambicana à realidade brasileira.
Conforme combinado, continuamos hoje nossas comemorações (ou não exatamente isso – risos -) ao 7 de setembro discorrendo a respeito de uma obra feita com muita ironia e sagacidade de brasileiro para brasileiros: o dito romance “pré-modernista” Triste Fim de Policarpo Quaresma, do jornalista carioca e afrodescendente Lima Barreto.
Sinopse
A história retratará as aventuras e desventuras do Major (que, na verdade, não passa de um simples subsecretário de arsenal de guerra rejeitado ao serviço militar) Quaresma em sua luta pela construção de um projeto nacional mais representativo para o povo brasileiro (ou, pelo menos, para quem ele acredita ser esse povo).
Em verdade, Policarpo Quaresma intenta resgatar as raízes da nação e construir um futuro 100% alinhado às tradições, sem julgá-las ou ponderar se estas são boas ou ruins, ou, ainda, se elas se adequam ao então estado de coisas. De fato, ele procura ser coerente com o seu amor à pátria a partir da História contada desta.
E o spoiler principal do livro já vem no título: essa é uma trama que não tem final feliz. Se, ainda assim, você quiser conferi-la (e deve fazê-lo porque é um clássico), acesse-a aqui.
Ideal x realidade
Bem, nosso amigo Policarpo tinha muitos ideais de futuro para a nação: alguns, muito bons; outros, bastante questionáveis e desarrazoados. O problema era que, mesmo aquelas propostas extremamente altruístas e lógicas, não eram aceitas por aquele povo a quem eram oferecidas.E é aqui que aparece um sério problema: expectativa x realidade.
Como diz Dom Rafael Llano Cifuentes em seu livro A Maturidade:
"Quando se torna um jovem adulto, sem muita experiência mas com muita vitalidade, a pessoa sofre ao verificar que a realidade da vida profissional, social e política que ela talvez pretendesse modificar oferece muito mais resistência do que pensava. Ainda não experimentou até que ponto o egoísmo, o descaso, a vaidade, a inveja e a estupidez são fortes no ser humano e como são necessários esforços colossais para obter resultados precários. Não consegue, enfim, calibrar o alto valor que tem a virtude da paciência."
Quem leu o Triste Fim sabe que Policarpo era um homem de meia idade. Porém, Dom Cifuentes explica que há diferenças entre idade cronológica e idade psicológica e que sua não correspondência é muito comum. É precisamente o que se passa com o malfadado protagonista de nossa análise.
Afinal, Policarpo era de uma alma adolescente apaixonada. Metia-se autodidata em sua coleção de livros majoritariamente românticos, buscando encontrar os fatos mais desconhecidos e mais encantadores de seu país, esquecendo-se das mazelas que com eles caminhavam de mãos dadas.
E, como tinha poucos contatos sociais e, devido mesmo a sua reserva, era tido como respeitável, não pressupôs que suas ideias tivessem repercussões tão nefastas. Por fim, suas experiências limitavam-se a uma rotina praticamente inalterada desde sua juventude, o que intensificava sua falta de vivências.
Assim, o que Quaresma almejava para si e para seus compatriotas não correspondia aos anseios destes e isso o frustrou sobremaneira. Ele não sabia que grandes mudanças podem acontecer, mas requerem tempo, serenidade, debate e astúcia. Exigem, igualmente, o cálculo das devidas proporções do que se pode atingir sozinho(a) e sob determinadas circunstâncias.
Então devemos deixar de nutrir ideais?
Muitas vezes, ouço literatos falarem dessa obra dita “pré-modernista” referindo-se a Policarpo como alguém alienado pelo simples fato de sonhar fora da caixinha, de transcender àquela realidade horrível que sucumbia (e ainda sucumbe) o Brasil.
Da mesma forma, ouço eloquentes elogios às obras realistas, naturalistas e modernistas por supostamente retratarem a realidade brasileira nua e crua, de forma mordaz.
Creio que devemos atingir o equilíbrio entre Policarpo (não Lima Barreto, cujo pensamento, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, é tão balanceado -e, para isso, odeio dizer, dialético – quanto as situações representadas pressupõem) e os adeptos do empirismo literário.
O sonho sem pés no chão jamais poderá ser atingido; por outro lado, a fixação problematizada excessiva na realidade não permite sair dela, justamente porque o tal “senso crítico” (muito útil, às vezes) pode ser viciante ao ponto de ser voluntária ou involuntariamente prolongado, sem proporcionar soluções concretas.
Assim, o próprio Realismo pode ser idealista, principalmente em se considerando que costuma vir eivado de ideologias.
Os perigos das ideologias
O conceito de “ideologia” é controverso, então deixo claro que, neste blog (e na vida – risos -), uso o dito “sentido fraco” ou o “senso comum” informado nesse post da Politize. Nesse sentido, pessoas, entram aspectos políticos, étnicos, raciais, sexuais, religiosos e o que vocês mais pensarem de fontes de agrupamento.
Ai, Bia, mas você não é católica? E admite que as religiões são um perigo? Será que, para você, o Catolicismo é uma exceção?
Gente, não dá pra viver sem uma ideologia (ou várias delas). A minha teoria é que, na verdade, nós somos todos meio politeístas, ainda que desejemos muito (e alguns de nós consigam, espero que eu pertença um dia a esse grupo de bem-aventurados) ser monoteístas a ferro e fogo.
Nós precisamos todos, sem exceções, de sustentáculos, ainda que estes não sejam metafísicos. Sabemos que somos nada; por isso, precisamos de algo maior que nós, que nos aglutine, que nos consuma, que nos levante e dê-nos sentido. Algo que nos dê esperança e permita-nos seguir em frente.
Como somos falhos, muitas vezes não conseguimos sentir satisfação sensorial, emocional e intelectual por aquele primeiro Deus de nossa eleição (que pode ser transcendental ou não), então recorremos imaturamente a outros (idem).
Isso é o ideal para uma católica? Não. Tento fazer uma análise objetiva, embora saiba, desde o princípio, que é uma tentativa destinada ao fracasso. Afinal, minha percepção será baseada em minhas experiências e em meu consumo cultural. Pretendo, ao menos, que escrever isso possa gerar novas ideias.
Bem, minhas impressões tão objetivas quanto permite minha subjetividade consolam-me ao menos num ponto: não acredito que possa existir alguém 100% ateu. Pode ser um ateu em relação ao Deus cristão ou a qualquer outra crença metafísica.
Na ânsia de libertar-se de um Deus transcendente e racional que tolhe seu hedonismo, pode ser discípulo de um Deus imanente, instável e incompleto (o que é ainda mais triste).
Voltemos à necessidade inata de uma ideologia, análoga a um Deus. E a volta vem depois de um século porque minha escrita, embora infinitamente inferior, parece-se em alguma medida com a de Machado de Assis, conforme ele mesmo diz em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
“[...] este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”
Enfim, voltando: as ideologias são necessárias porque conhecimento (seja ele científico, do senso comum ou das Filosofias mais desconhecidas inventadas em mesa de bar) é matéria e como dizia Lavoisier:
“NA NATUREZA, NADA SE CRIA, NADA SE PERDE, TUDO SE TRANSFORMA”
O problema consiste em seguir cegamente uma ideologia. Fazer isso, na verdade, é não a conhecer. Então, o que digo não é para não seguir, mas para deixar em stand by, para não se acomodar. Não fazer muitas metonímias, sabe? Vamos ver se minha escrita bêbada esclarece-se melhor abaixo com um exemplo.
Sou católica e existem várias igrejas católicas pelo mundo, cada uma com vários servos leigos, religiosos e sacerdotes. Infelizmente, isso não quer dizer que todos nós que seguimos (sim, preciso incluir-me) a Igreja Católica façamos tudo que ela nos pede na Bíblia, pela Tradição e pelo Magistério.
Até porque são 2000 anos de História e somos pecadores estúpidos.
Então, quando uma ideologia oposta tende a pensar algo a respeito da Igreja Católica e você segue essa oposição, se você me vir ou vir alguém católico praticando esse ato previsto pela ideologia opositora, você acreditará que é isso mesmo que a Igreja Católica ordena ou, no mínimo, autoriza a seus seguidores.
O ideal, portanto, seria que você pesquisasse qual é o posicionamento oficial da Igreja acerca do tema. Mas será que você o fará?
O mesmo vale para quando estamos na própria ideologia e eu vou-me usar de novo como exemplo (que é pra não ofender ninguém – espero que também não o faça com Nosso Senhor, que ele me ajude! -).
Se eu aprendi na catequese, por exemplo, que uma atitude é errada, mas esse comportamento compraz-me e, depois, eu vejo um padre em quem confio ou um(a) leigo(a) engajado(a) apoiando ou praticando esse ato, eu suponho que na verdade ele é tolerável.
O certo, porém, é que eu pesquise o que diz oficialmente a Igreja, para ver se o(a) cristã(o) está em pecado ou não. Mas será que eu o faço?
Nos meus exemplos, estou indo sempre do “certo” (pressuposto pela libertinagem) ao “errado” (na doutrina), mas o oposto (do “errado” – decorrente do excesso de escrúpulos – ao “certo” – doutrina -) também ocorre.
Além dessas investigações, é necessário verificar a coerência interna da ideologia que seguimos. Às vezes, seguimos porque é cômodo mesmo, não porque faça sentido.
De toda forma, espero que tenha dado para perceber que, quando seguimos cegamente uma ideologia, na verdade não o fazemos porque acreditamos 100% nessa ideologia, mas sim porque elegemos uma parte dela e tomamos como o todo, de modo que segui-la nos seja cômodo e terrivelmente subjetivo.
É por isso que, comparando duas coisas diametralmente opostas, vemos tantas interpretações díspares de Marxismo (distantes do próprio Marx) e vemos tantos ritos estrambólicos de Catolicismo (distantes da doutrina).
De volta a Policarpo Quaresma
Precisava divagar desse jeito para falarmos da subordinação de Policarpo a um nacionalismo e a um patriotismo sem pé nem cabeça. Não era um amor ao país e a seus habitantes, mas sim um amor a sua própria concepção de país e de habitantes. Ele fez uma salada ao seu bel-prazer de tudo que lhe pareceu melhor (falso ou verdadeiro) do que se dizia das raízes brasileiras.
Conclusão
Acho que esse é o maior e menos coeso texto que já escrevi até agora, mas quero concluir parafraseando a pergunta que abriu o subtítulo da minha argumentação: devemos deixar de sonhar, de almejar a dias melhores, de contribuirmos para a construção de um país mais tolerante, mais justo, mais consciente, mais coerente e verdadeiramente mais livre?
Claro que não! Mas precisamos saber, a partir do estudo e da experiência, contra o que ou contra quem estamos lutando. E o pior: precisamos entrar na sua lógica. Sim, pois, a depender da cegueira ideológica, a coerência é totalmente ignorada.
É trabalho de formiguinha mesmo que, diferentemente do que pensava Policarpo, não tem suas propostas todas atendidas do dia pra noite. Convicção, força, foco e fé, e, um belo dia, o Brasil chegará ao futuro digno de que o “país do futuro” necessita.
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